quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Como eu jogo o jogo e o que eu gosto no jogo.

Mago (e, em última análise, o RPG em si) é um jogo riquíssimo e, por essa riqueza, oferece múltiplas formas de se ver e entender o jogo – e, por conseguinte, de jogá-lo. Como o objetivo último do RPG é a diversão, se você e os seus amigos estiverem se divertindo, então qualquer forma de jogar está correta (e, como corolário, se você e os seus amigos não estão se divertindo, então você está jogando errado, não importa o que o livro diga). O objetivo deste texto, portanto, não é dissertar sobre qual seria a forma “certa” de se jogar. Este texto é sobre a forma como *eu* vejo, entendo e jogo o jogo, o que me diverte nele e como eu divirto a mim mesmo e aos outros enquanto eu jogo Mago. O objetivo dele é compartilhar algumas dicas aos que partilham da mesma visão que eu sobre o jogo e oferecer algumas reflexões para os que não partilham. Em face disso, toda a vez que eu fizer uma afirmação na linha “Mago é isso”, por favor entendam como “Mago, a meu ver, é isso” ou “Mago, nas minhas mesas, é isso”.

O primeiro elemento do jogo que eu gostaria de abordar são os jogadores e a razão para começar por eles é simples: eles são a componente mais importante num jogo de Mago. Claro, em qualquer mesa de RPG, os jogadores são fundamentais, mas o que eu quero dizer é que em Mago o papel deles é ainda mais importante que em outros jogos. Há uma série de razões para isso, a primeira delas sendo o grau de poder dos personagens. Não é segredo que com apenas alguns pontos em Esferas um personagem Desperto é capaz de fazer *muitas* coisas e manejar um poder muito grande. Um personagem Discípulo já é capaz de praticamente mudar o mundo (e há uma razão conceitual para que isso seja assim, mas já falo disso), três ou quatro personagens então são capazes de realizar mudanças tão grandes na realidade fictícia do jogo que desafiam qualquer narrador a manter o controle da trama sem recorrer a artifícios autoritários (e com isso incorrer em todos os problemas que acompanham tais posturas). É por causa disso, por causa desse grau de poder que os personagens de Mago têm sobre a narrativa que eu acredito que nesse jogo os jogadores são mais do que simples jogadores. Eles devem ser tratados como narradores-auxiliares, como co-criadores da trama da história. Afinal de contas, se eles não estiverem alinhados contigo sobre como deve ser o jogo, as chances são que os personagens deles simplesmente puxarão a Crônica para um rumo diferente. Se na hora de enfrentarem o vampiro que você planejou para ser o grande antagonista daquele arco de história os jogadores simplesmente sentarem e pensarem “Ah, para que me dar o trabalho? Vou usar essa e essa Esfera e transformá-lo numa cadeira de jardim* do conforto e tranqüilidade da minha casa”, você provavelmente se sentirá incrivelmente frustrado e provavelmente tentará negar o direito dos jogadores fazerem isso, mesmo que eles sejam amparados pelas regras, o que por sua vez gerará mais atrito. Para evitar isso, é importante trabalhar com os jogadores, convencê-los que aquele será um clímax legal para a trama e fazer com que eles trabalhem em conjunto com você para criar uma boa história. E isso envolve uma boa dose de negociação dos dois lados, pois, da mesma forma que você pode convencê-los a jogar de forma adequada com o clímax que você planejou; você também tem de estar disposto a ouvir deles quando eles disserem que não tem interesse nenhum em enfrentar vampiros em combates corporais e ao invés disso preferem uma história baseada em conspirações na Capela local.

*Recomendo a todos a leitura do excelente texto “Transformando Vampiros em Cadeiras de Jardim e Outras obras de ‘Alta’ Mágika”, do Stephan Wieck, presente no Livro das Sombras. É um texto que trata justamente desse tipo de coisa e que mudou a minha forma de ver o jogo. Sério, é um texto excelente e que mais pessoas precisam se lembrar, narradores e jogadores.

Ok, então jogadores são uma peça muito fundamental num jogo de Mago, pois nesse jogo, eles possuem um grau de controle (relativo ao Narrador) muito maior que a maioria dos jogos. Como então lidar com isso? Como essa noção abstrata se traduz em conselhos práticos de conduta num jogo?

Bom, primeiramente, se você é um jogador, tente não ser um jogador babaca. O que eu vou dizer aqui é basicamente o mesmo que o Wieck diz no texto dele. Tente trabalhar em conjunto com o narrador da sua mesa e com os demais jogadores para criar uma história legal. Resista ao impulso de mostrar o quão descolado e poderoso o seu personagem é e sair matando mestres anciões e desafiando dragões simplesmente porque ele pode. Sim, existem uma tonelada de mecanismos dentro das próprias regras do jogo que impedem que um jogador “despiroque” por completo, mas sendo um tanto inteligente você ainda consegue contornar essas restrições e fazer muita bagunça dentro de uma trama. Resista a esse impulso, coopere com o seu narrador e com os outros jogadores da mesa. Se você realmente sentir vontade de ir contra a história que todo mundo está traçando, converse primeiro, em off com todos e expresse que você tem uma idéia diferente sobre os rumos da campanha. Aprenda a ser maduro e ouvir para ser ouvido também. Se todo mundo concordar, aí vá em frente e faça aquilo que estava pensando – e certifique-se que vá ser legal. Se não, engula o orgulho e coopere com a história (ou mude de mesa, se for uma desavença inconciliável de visões). O objetivo do RPG é se divertir e não “zerar o jogo”. Não é porque o seu personagem pode fazer algo que você como jogador deveria fazer isso.

(E por favor, sem o bullshit de “mas eu estou só interpretando o meu personagem e é isso que ele faria”. É o jogador quem define as ações do personagem, não o contrário. Sendo assim, não dê a personalidade do seu personagem como desculpa para agir como um mané. Se você realmente preza a verossimilhança de um personagem acima da diversão dos outros jogadores da sua mesa, então você deveria parar de jogar RPG e escrever um romance. Lá a coerência e a verossimilhança são mais importantes e você não precisa de mais ninguém interferindo na sua história. Jogar RPG é para quem quer se divertir com amigos.)

Agora, do lado do narrador, a primeira coisa que você deveria fazer é se reunir com os jogadores e escutar o que eles querem jogar. Ponha também os seus anseios e desejos e tentem todos ali conciliarem-se para desenhar uma história que agrade a todos. Você não é obrigado a ficar preso narrando uma história que não te agrade, claro, mas tem de se certificar que a trama que você está escolhendo seja interessante para os seus jogadores e gire em torno dos personagens deles. Não é raro um narrador criar sozinho uma trama enorme e grandiosa em seus cadernos, antes mesmo de conhecer com quais pessoas irá jogar, quanto mais quais serão os personagens dos jogadores e depois se frustrar porque as coisas não saíram conforme o esperado por ele. Isso, a meu ver, é um erro. Se você quer criar uma história sozinho, vá escrever um romance, não jogar RPG. O ideal, portanto, seria primeiro se reunir com os jogadores, conversarem acerca dos temas e estilos de jogo que cada um tem, definirem o que querem para a mesa, criarem os personagens e só aí você começar a rascunhar a sua história. Isso evita inúmeros problemas para a crônica. Para começar, ao reunir primeiro os jogadores todos e definir as premissas da mesa com eles para só então passar a criação de personagens (ao invés de deixar cada jogador criar sozinho o personagem que desejar, conhecendo quase nada da trama) isso evita um dos principais problemas que narradores de Storyteller e em particular de Mago possuem: o de acabar com um grupo de personagens que não conversam entre si, como um cultista do Êxtase sadomaso, uma freira católica, um xamã indígena e um nerd virgem de TI. Se os personagens serão o centro da crônica, é importante que eles consigam formar um grupo coeso e uma forma fácil de conseguir isso é fazendo com que todo mundo esteja na mesma página durante a criação de personagens e trabalhe junto, em cima de uma premissa comum.

Essa postura de trabalhar em conjunto com os jogadores na hora de criar os personagens e a crônica deveria ser mantida ao longo do jogo, não apenas nas etapas de preparativos para o jogo. Ao fim de cada sessão de jogo, tire um tempo para ouvir os jogadores, saber o que eles gostaram no jogo, o que não gostaram, o que esperam para o próximo encontro e o que procuram fazer na história. Não tenha medo também de expor o que você pretende fazer no próximo jogo, nem que seja em linhas gerais. Muitos mestres tem uma fixação em manter a sua trama em segredo e são muito relutantes em compartilharem com os jogadores o enredo que eles pretendem criar. Eu acho isso errado. Eles não são espectadores da história magistral que você está escrevendo, nem tampouco você irá criá-la sozinho. Eles são “colegas de trabalho” seus e você deveria, portanto, coordenar com eles o que você vai fazer. Não tenha receio de contar, nem que seja em linhas gerais, o que você planeja para os próximos capítulos da história; isso te ajuda a garantir que eles irão te ajudar e “seguir o script” na hora do jogo. Além do mais, acredite, ainda sobra bastante espaço para surpreender os jogadores na história, até porque, você não precisa contar todos os detalhes do que está tramando, apenas o bastante para que eles cooperem contigo na hora do jogo.

Deixando um pouco de lado os jogadores, vamos passar agora à análise de outro elemento do jogo que eu acho importante: os temas de Mago. O RPG é um jogo incrível e as histórias que cada pessoa pode criar dentro de cada jogo são praticamente ilimitadas. Cada grupo de mestre e jogadores pode jogar o jogo de uma forma diferente e é possível criar histórias com qualquer temática dentro de praticamente qualquer sistema e cenário. Mago, em particular, é ainda um jogo mais aberto que a maioria. Dito isto, cada cenário/jogo em geral possui alguns temas centrais e funciona melhor dentro desses temas. O tema central de D&D, por exemplo, é explorar locais perigosos, acumular tesouros e (sobretudo nas novas edições) matar monstros. Claro, você pode fazer uma aventura centrada em romances jogando D&D e existem inclusive cenários que torcem um pouco essa temática do jogo, como Ravenloft, que insere um elemento de horror gótico no jogo, mas ainda assim, a temática central de D&D é essa e as regras e cenários do jogo foram feitos para funcionar bem dentro desse tema. Da mesma forma que um serrote pode ser usado para bater um prego, mas foi projetado e funciona melhor quando usado para serrar tábuas, a meu ver, D&D funciona melhor dentro do seu tema, mas permite que se façam outras coisas. Um outro exemplo é Vampiro. A meu ver, a temática central desse jogo é o horror pessoal de ver-se lentamente se transformando num monstro sociopata.

Em Mago: A Ascensão, o que eu acredito que seja o tema central, ou pelo menos um dos temas centrais é a seguinte pergunta: se você tivesse o poder para mudar o mundo, se conseguisse mudar e moldar a realidade ao seu redor apenas com a sua vontade, como você mudaria? Como você mudaria o mundo e como você mesmo mudaria como resultado disso? Essa é uma das razões que eu acredito que os personagens em Mago são muito mais poderosos que o padrão dentro de um RPG: é uma decisão pensada e uma conseqüência do próprio tema do jogo; os personagens tem mesmo de serem capazes de mudar o mundo. O jogo é sobre poder e como usar esse poder de uma forma responsável e significativa para o mundo. Não faz sentido então não dar poder aos personagens dos jogadores; seria como criar uma águia e roubar-lhe a capacidade de voar. Deixe que tenham a capacidade de transformarem os seus sonhos em realidade e veja onde isso leva a história, pois se Mago é um jogo de Poder, ele também é um jogo de Consequências e Responsabilidade. Os personagens podem mudar o mundo, sim, mas cada ação que fazem traz consigo uma reação também. Magos irresponsáveis têm de enfrentar as conseqüências do Paradoxo, artífices orgulhosos sofrem com a Húbris e Despertos que realizam atos de vilania acabam com uma Ressonância tão vil quanto eles. Toda ação traz conseqüências e isso é algo central em Mago, muito mais que em outros jogos. Se mesmo em Vampiro, que é um jogo de horror pessoal, existe a possibilidade de abraçar a Besta e tornar-se um assassino sem grandes problemas, em Mago mesmo os vilões precisam lidar com os efeitos de uma Ressonância negativa. Sempre há conseqüências e muitas vezes, Consequências com C maiúsculo. É um jogo de personagens poderosos, sim, mas se por um lado ele põe uma dose enorme de poder nas mãos dos jogadores, ele também coloca um aviso: “Pense bem o que você vai fazer com isso”.

De novo então seguem alguns conselhos mais práticos de como aplicar esses princípios dentro do jogo. Parte deles já foi explicada nos parágrafos anteriores, mas existem algumas coisas mais a serem ditas. Em primeiro lugar, se você é um narrador, evite tolher os poderes dos jogadores. Eu sei que basicamente tudo o que você já leu sobre RPG te doutrinou para tentar a todo custo evitar personagens ”overpower” (um termo, aliás, que eu detesto), que overpower é ruim, que você precisa ser capaz de controlar o que os personagens são capazes. Deixe isso ir, deixe esses seus receios irem embora, treine-se a dizer mais sim do que não e deixe os personagens dos jogadores terem o grau de poder que eles concordarem em ter. Você só deve se preocupar em alguém ser poderoso demais se de alguma forma essa pessoa estiver usando isso para roubar a diversão dos outros jogadores. Se não for esse o caso, se todo mundo estiver se divertindo e a história estiver sendo bacana, então o que você deveria se preocupar não é com o grau de poder dos personagens e sim com as conseqüências dos atos deles. Existem três planos em que cada ação de um Desperto potencialmente repercute. O primeiro e mais óbvio deles (mas ainda assim bem esquecido) é a sociedade mortal. Assassinatos, por exemplo, atraem desde policiais e jornalistas até pessoas querendo vingança e as vezes até mesmo coisas aparentemente inócuas como passar a madrugada fazendo um ritual podem atrair a atenção de vizinhos querendo saber o que o maluco da casa ao lado estava fazendo durante a madrugada, ou porque aquele nerd Adepto nunca sai de casa - "o que ele está tentando esconder?" O segundo plano em que as ações de um Desperto repercutem é o mundo sobrenatural. Desde a Tecnocracia vigilante caindo em cima de um mago descuidado até mesmo a espíritos da Umbra enfurecidos pelas interferências dos magos em seus assuntos, há uma ampla margem para as ações de um Desperto interferirem no mundo sobrenatural. Considere, por exemplo, algo tão aparentemente inócuo e dês-sobrenatural como usar Entropia para influenciar o resultado das ações de uma empresa na Bolsa. Com isso, você pode atrair a atenção do Sindicato, dos Vampiros que manipulavam aquela empresa, dos Lobisomens que lutavam contra aquela empresa, dos Espíritos do Livre Mercado, que não gostaram da interferência e do seu Mentor, que te pegou usando mágika para uma bobagem dessas. Por fim, o último plano em que cada ação de um Desperto repercute é em seu próprio Avatar. As ações dele podem atrair diferentes tipos de Ressonância, mas não é só essa a única repercussão que pode haver. Existem uma série de importantes lições que um personagem precisa aprender para Ascender e objetivos que o Avatar dele traçou para si. A Ascensão exige um aprimoramento constante, uma busca pela perfeição da alma e isso necessariamente passa por saber lidar com as conseqüências de seus atos.

Assim sendo, tente sempre ao final de cada jogo parar um pouco e pensar como foi a conduta de cada personagem e onde isso está os levando. Discuta isso com os jogadores, faça-os enxergar onde as ações dos personagens dele estão os conduzindo. Lembre-se, aliás, que consequências não são apenas coisas ruins e que um personagem particularmente virtuoso deveria também sentir os efeitos dessa virtude com a mesma intensidade que um personagem impulsivo sofre os efeitos de sua impulsividade. Muitos narradores são mais rápidos em punir do que em premiar e isso é algo que sempre me desapontou um pouco quando testemunhei episódios assim.

O próximo ponto que eu gostaria de analisar são as regras de Mago e aqui o trabalho fica um pouco complicado porque eu nunca escondi o meu desgosto com as regras do sistema Storyteller. Não vou entrar muito em detalhes na razão pelo meu desgosto, mas basta dizer que eu acho que elas não desenvolvem de forma adequada a proposta de serem um conjunto de regras focado na narrativa e por isso mesmo eu normalmente utilizo um outro sistema de jogo nas vezes em que narro. Porém, tentarei deixar esses rancores contra o sistema Storyteller de lado e falar aqui sobre uma visão mais ampla do papel das regras num jogo de Mago, além alguns pensamentos sobre uma parte das regras que eu realmente gosto no jogo: as regras de mágika.

Não há dúvidas de que as regras de mágika são uma das componentes mais fundamentais da identidade do jogo. Mago: A Ascensão só é Mago: A Ascensão por causa da forma como a magia é tratada nele. Se você pusesse outro sistema ali, como por exemplo, as regras de magia de D&D, mesmo que se utilizasse o framework do sistema Storyteller e o cenário de Mago, já não seria o mesmo jogo; haveria uma sensação bem diferente (e aqui digo por experiência própria, que já joguei com Narradores que tentaram enquadrar e limitar as regras de mágika para ficarem mais próximas de jogos como estes). Da mesma forma, se você transpuser essas regras de mágika para algum outro sistema (como eu fiz), você terá uma adaptação boa de Mago para aquele sistema. Quais são então as características dessas regras?

Em termos de mecânica, eu acredito que os três componentes principais do sistema são a divisão das Esferas (e os efeitos de cada nível delas), a Quintessência e o Paradoxo. Se você conseguir determinar como cada uma dessas componentes vai funcionar no seu jogo você consegue ter uma adaptação razoável de Mago para ele e dentro do jogo original esses três elementos são os elementos que mais influenciam, do ponto de vista da pura mecânica, o funcionamento das regras dentro do jogo. Já do ponto de vista da narrativa/cenário, há outros efeitos igualmente importantes (talvez até mais), mas que são menos representados nas regras. São eles Paradigma/Estilo Mágiko, Avatar e Ressonância. Do ponto de vista de como o cenário é apresentado e como uma narrativa pura é estruturada, esses elementos são (ou deveriam ser) muito mais decisivos no resultado final dos esforços de um místiko do que, por exemplo, o nível exato dele na Esfera de Primórdio. Não obstante, o efeito desses elementos na mecânica de como a magia funciona no sistema é ou indefinido ou bem secundário. Essa é uma das críticas que eu tenho ao sistema de regras e que se eu fosse revisá-lo (como de fato tive a oportunidade quando fui criar uma adaptação para FATE), eu mudaria e tentaria dar um pouco mais de destaque para estes elementos.

Antes de entrar um pouco mais a fundo nessa discussão sobre como eu enxergo a mágika em Mago, algumas últimas palavras sobre o papel das regras em geral no jogo: Mago é um jogo sobre contar histórias. A diversão dele não está no jogo em si, na mecânica dele, no G de RPG e sim no drama das histórias, no processo de criar uma boa narrativa, no RP da sigla. Nem todo jogo é assim. D&D, por exemplo, é a meu ver um jogo com um foco bem maior em oferecer uma diversão ao se *jogar* as regras, como num vídeo-game ou num jogo de tabuleiro e por isso as regras dele recebem uma atenção especial. Elas são mais detalhadas e mais divertidas do que as regras de Mago jamais foram ou jamais serão e cada novo produto da linha traz mais regras ao jogo, na forma de novas classes, talentos e etc. Da mesma forma, existe nesses jogos uma preocupação com o equilíbrio de poder entre os jogadores e o balanceio entre regras em geral que não existe em Mago. Naqueles jogos é importante que não exista um poder/classe/talento/breguete muito mais poderoso que os outros; idealmente, todos eles seriam igualmente balanceados, para serem igualmente divertidos. Eu não vejo isso como uma preocupação central nas regras de Mago e nem acho que deveria ser, pois, mais uma vez, o equilíbrio e balanceamento do jogo só são importantes na medida em que interferirem na diversão da história que está sendo contada e aqui, diferente de lá, a diversão não vem da aplicação das regras do jogo, do “jogar” em si. Outros RPGs têm também uma preocupação maior com a verossimilhança, uma preocupação que o resultado da aplicação de suas regras gerem uma aproximação do que aconteceria na realidade. Em Mago, mais uma vez, eu não enxergo essa preocupação num grau tão grande. Ela existe, claro, mas aqui a pergunta mais importante não é “o que aconteceria de verdade numa situação assim?” e sim “o que geraria uma história mais interessante?”. E aqui vai mais uma pequena reclamação: essas coisas, em tese, deveriam ser a alma do sistema Storyteller, é o que os designers a toda a hora afirmam e tal, mas não é algo que eu realmente sinto nas regras do jogo. Eu conheci já outros sistemas que incorporam esses valores de uma forma bem mais acentuada.

Para que então servem as regras? Qual o papel delas no jogo?
Bom, para começar, eu acredito que as regras servem como uma forma mais acurada de descrever a realidade do jogo do que com meros adjetivos. Ao invés de dizer que um personagem é forte, outro é fortíssimo e um terceiro tem uma força sobre-humana, dizemos que o primeiro tem Força 3, o segundo tem Força 5 e o terceiro tem Força 6. Da mesma forma, ao invés de dizer que aquela é uma prova dificílima, que só os melhores seriam capazes de realizar, dizemos que ela exige três sucessos com dificuldade 8. Assim, as regras atuam aqui como um descritor mais objetivo da realidade fictícia do jogo. O segundo papel delas, a meu ver, é estabelecer uma espécie de “contrato” entre mestre e jogadores, definindo quais serão os protocolos que valerão dentro do jogo e como as coisas serão apitadas, se aproximando aqui das noções de jurisdição e Direito mesmo. Claro, sempre existe a Regra de Ouro e tal, mas ainda assim, um sistema de regras está lá para ajudar os jogadores a calibrarem as suas expectativas sobre como a história será decidida (“o tiro pegou ou não pegou?”) e para argumentarem com o Narrador quando ele os contrariar (e aqui vale lembrar que narradores muito arbitrários, que gostam de apelar muito para a Regra de Ouro costumam acabar sem jogadores). E, enfim, é este e apenas este que eu acredito que seja o papel das regras dentro de um jogo de Mago.

Voltamos agora à discussão sobre a Mágika em Mago. Eu já toquei brevemente nos parágrafos anteriores sobre a minha visão da mecânica da mágika, agora vou falar alguns preceitos gerais que eu acredito que compõem a mágika do jogo.

1) A Mágika vem do Avatar, da alma do mago, da porção Divina dele que habita um plano superior de existência. Os paradigmas específicos de cada um podem querer mudar essa idéia (com graus maiores ou menores de modificações), mas isso é uma verdade básica e objetiva da natureza da mágika, uma das poucas no jogo. O Avatar é quem opera todos os Efeitos que um místiko realiza. Sem ele, não há magia e da mesma forma, um Avatar que não esteja consciente de si mesmo e de seu poder de mudar a realidade é dito um Avatar Adormecido e não importa quão cônscia da magia a pessoa ligada a ele seja, enquanto este Avatar não Despertar e, com isso, tornar-se também cônscio de seu papel, essa pessoa jamais será capaz de operar qualquer mágika.

2) Apesar disso, a mágika é uma forma de expressão bastante individual de cada místiko. Se o Avatar é como uma fonte de luz, o místiko que está realizando o Efeito funciona como uma série de prismas, lentes e filtros que modificam essa luz, dando-lhe características próprias antes de ser captada pelo mundo. O Paradigma é o principal desses filtros, como inclusive é de se esperar, pois ele representa simplesmente a visão de mundo do personagem, mas não é o único. Sua Ressonância, suas emoções, seus maneirismos e personalidade, tudo isso deveria influenciar também a forma final de uma mágika, constituindo lentes e prismas adicionais sobre a luz emanada do Avatar. Diferente de uma mágika estática e impessoal, como a maioria dos outros sistemas, a magika em Mago é tremendamente pessoal e dinâmica. Ela representa o místiko, quem ele é e quem ele “está”. Não há impessoalidade na magia de Mago.
Do ponto de vista prático, porém, isso pode ser um pouco complicado, eu entendo. Nem sempre é possível ou desejável fazer uma pausa no jogo para toda vez que um personagem for fazer uma mágika e ficar refletindo em como seria possível transformá-la num reflexo do personagem que a opera, mas ainda assim, ao menos em grandes rituais ou quando o personagem estiver sob o efeito de emoções poderosas vale a pena dar pelo menos um colorido nos efeitos dele. Talvez o Adepto que estivesse particularmente apaixonado, ao tentar entrar na Teia Digital, percebesse que ele caiu justamente na sessão da Teia que representa o perfil do facebook da pessoa que ele ama. Talvez o Eutanatos fosse arrebatado por antigas memórias toda vez que ele fizesse mágikas de Tempo ou Mente na cidadezinha em que ele nasceu. Detalhes menores assim dão um colorido legal a história e me levam ao meu terceiro ponto...

3) A Mágika não deveria ser algo limitado e estático, mas sim algo mais vivo. Em AD&D, por exemplo, uma bola de fogo vai produzir exatamente os efeitos listados no livro, nada a mais, nada a menos e nada diferente. Em Mago (excetuando-se o caso de Rotinas), eu acredito que não seja assim. Se o jogador fez tudo o certinho, obteve os Sucessos necessários no Efeito dele, sabia todas as Esferas e tal, o Narrador deveria fazer sim com que acontecesse o que o jogador desejava, mas, também teria liberdade de incluir detalhes adicionais, além do escopo do Efeito, bem como ser um pouco liberal na forma como esse Efeito se manifestou. Dois exemplos rápidos para ilustrar esse ponto. O primeiro veio de uma mesa de jogo que eu mestrei. Três jogadores – dois cultistas e um verbena – entraram numa viagem coletiva de drogas e música para investigarem o passado de uma bala que eles haviam recuperado de um assassinato importante. Ao invés de simplesmente lhes passar as informações que eles desejavam, eu resolvi torcer um pouco as coisas. Aproveitando que os três estavam bem chapados, que um deles (o principal condutor do ritual) tinha um paradigma egípcio e outro lidavam com espíritos, eu resolvi fazer com que os três tivessem uma alucinação que fez aparecer na frente deles uma representação enorme do deus Anúbis, que (além de apavorar um pouco os jogadores, hahaha) então lhes passou as informações que eu queria. Isso não estava no escopo da mágika deles, nenhum dos jogadores/personagens tinha desejado invocar um espírito, muito menos de Anúbis, para conseguir essa informação. Essa foi simplesmente a forma como a mágika se manifestou no ritual deles. O segundo exemplo foi algo que eu descrevi num dos mini-contos do Akalanata, quando ele usa sua mágika para tentar descobrir o futuro da vida amorosa de sua irmã e a Ressonância dele se espalha pelo aposento e faz uma pessoa que no passado havia o magoado tropeçar num brinquedo. Aqui, ao invés de modificar a forma que o Efeito adotou, eu preferi incorporar detalhes adicionais a ele, mini-Efeitos que não estavam no escopo da mágika original. São pequenas coisas que adicionam um colorido legal ao jogo.

4) Tudo deveria ser possível, se você estivesse disposto a pagar o preço. Não quer dizer que tudo seja fácil aos personagens, mas eu acredito que com os recursos certos em quantidades adequadas, a mágika deveria ser capaz de fazer qualquer coisa a quem estivesse disposto a investir nisso em termos de preparativos, Quintessência e Paradoxo. Isso aliás traz um segundo corolário, mais prático, que eu acho importante: preparativos realmente deveriam fazer a diferença no jogo e os jogadores deveriam ser bem encorajados a investirem nisso. Um ritual feito na lua certa, em solo consagrado, usando a Ressonância adequada, com materiais raros, uma boa quantidade de Quintessência e um coro de acólitos entoando cantos místicos deveria ser bem mais poderoso e eficaz que um efeito rápido realizado balançando no ar uma varinha e dizendo um latim porco. A meu ver, sempre deveria haver uma saída, mas sempre deveria haver um preço também. O Efeito tem uma dificuldade alta demais ou requer muitos Sucessos? Se você tiver Quintessência, Ressonância , tempo e preparativos suficientes, isso não seria problema. Precisa de Esferas que você não tem? Existe algum grimório perdido por aí que te permite realizar exatamente esse Efeito (e só esse Efeito) sem precisar conhecer todas elas, é só achar. Quer fazer algo realmente grandioso? Então além de tudo isso, você precisa estar pronto para receber o Paradoxo, que é o preço de fazer algo assim. E aí por diante. A mágika é muito menos uma questão de dados e atributos e muito mais uma questão de estar disposto a fazer o que for necessário. Esse, afinal, como eu disse, é um dos temas principais do jogo na minha visão: o dilema entre Poder e Responsabilidade.

5) O quinto e último ponto da mágika em Mago e que a meu ver amarra todos os anteriores é o Paradoxo. Do ponto de vista da mecânica, a função dele é simples e talvez até um tanto simplória: é fornecer uma trava bastante eficiente para evitar que os jogadores saiam por aí fazendo loucuras, de modo a garantir que uma mesa não termine com personagens voando, soltando bolas de fogo e invocando grifos em plena luz do dia (ao menos não enquanto estiverem na Terra; na Umbra o papo é outro...). Porém, como isso ficou tão bem amarrado do ponto de vista conceitual! Ao invés de colocar a coisa como uma regra mística ad hoc (um pouco como é na linha Awekening, para a minha tristeza), a explicação para o Paradoxo é que ele é uma manifestação da desarmonia criada quando os Efeitos criados por um Avatar não se conformam com a visão que os demais Avatares Adormecidos possuem da realidade. Isso, a meu ver, é genial. Primeiro, porque dentro da visão mecânica das regras, te permite abrir uma brecha para deixar realizar Efeitos loucos em locais em que tais Efeitos seriam bem aceitos. Noutras palavras, a restrição só existe (ou só é mais forte) quando ela é necessária para manter a coerência do cenário. Além disso, é algo que se interconecta com as noções de mágika advinda dos Avatares, filtrada por Paradigmas, dinâmica e flexível de forma bastante harmônica. E, mais ainda, ao invés de ser simplesmente uma ferramenta de controle, sem graça e cruel, te permite também criar ganchos interessantes para narrativas, baseados em reações do Paradoxo diferentes dos simples Choques de Retorno, como Silêncios, Espíritos do Paradoxo e etc.

Por fim, para fechar este já bastante longo texto, eu gostaria de falar como eu vejo Mago como sendo uma metáfora para o próprio jogo em si. Isso é algo que eu já dissertei um pouco em outro post aqui no blog, mas que eu acho que vale a pena falar um pouco mais e expandir um pouco mais.

Eu vou começar com uma metáfora que eu usei quando estava tentando explicar melhor aos meus jogadores o que era o Avatar em Mago. Ok, nós sabemos que é uma parte da alma do Mago, uma espécie de Eu Divino dele, mas há um pouco mais que isso. O Avatar é como uma entidade própria, que pula de encarnação em encarnação, acumulando conhecimentos e experiências até Ascender. Sabemos também que ela é a fonte do verdadeiro poder de um Desperto, que é algo maior que a vida que ela está vinculada no momento. Podemos enxergar a relação Avatar-mago mais ou menos como o mago sendo um personagem e o Avatar o jogador daquele personagem. Da mesma forma que o Avatar, aquele jogador está ligado ao personagem atualmente, mas já se ligou a diversos outros personagens antes e acumulou os conhecimentos e experiências de cada vez que jogou RPG. E, da mesma forma que o Avatar, é você quem é a fonte de poder do seu personagem, que permite que ele seja uma força da mudança dentro da narrativa que você e os seus amigos estão contando. Pense nisso por uns minutos, ahaha. Talvez você tenha acabado de ter uma Epifania, mas acalme-se que a metáfora é ainda maior que isso.

Pronto? Então continuemos. Como eu estava dizendo, é você quem permite que o seu personagem seja uma força da mudança dentro da narrativa que você e os seus amigos estão contando. E aqui vem a segunda parte da metáfora: se você é o Avatar do seu personagem, então a narrativa que estão contando é toda a Tellurian. Pense nisso também, enquanto se recorda de um dos principais “dogmas” do cenário de Mago: a Realidade é Consensual. As coisas são como são porque é assim que todos concordam que seja. Houve um tempo em que as pessoas concordavam que grifos existiam e assim era. Depois o Consenso mudou e os grifos deixaram de ser algo aceito e então foi como se eles nunca tivessem existido. Da mesma forma, a sua narrativa de jogo é um consenso entre você e os demais jogadores/narradores da mesa. Ela pode ser qualquer coisa, mas apenas se você e os outros da mesa concordarem. Esse universo, essa realidade, é regida pelas forças que todos concordaram, as regras de jogo e o arbítrio do Narrador. Tão verdadeira como a constante gravitacional no nosso mundo, naquele universo é uma regra que uma espada longa causa 1d8 de dano. Quando você tiver absorvido isso, vamos para a terceira parte da metáfora, a mágika.

Partindo da premissa que o seu jogo é a realidade consensual em que o seu personagem vive e que você é o Avatar dele, pense um pouco o que seria a mágika dentro dessa metáfora. E aqui vai uma dica para o caso de você estar tendo dificuldade nisso: O termo Arete, dentre os múltiplos significados que ele pode assumir no grego, significa também a qualidade de um orador e sua oratória, a capacidade dele de persuadir ou comover os seus ouvintes.

Pronto para a terceira parte da metáfora? Pois bem, a mágika então seria todos aqueles momentos preciosos no RPG em que se resolveu deixar as regras de lado e fazer os acontecimentos de acordo com a vontade dos jogadores/narradores. É aquela hora em que você, usando a sua capacidade de oratória e bons argumentos, consegue convencer o Narrador e os demais jogadores da mesa a aceitarem uma Qualidade (ou Vantagem/Talento/o que quer que se ajuste melhor ao seu sistema de jogo) nova, que você inventou. É aquele momento em que você consegue descrever tão bem a sua ação que todo mundo decide “ok, não precisamos de dados para isso, o que aconteceu foi o seguinte”. Em suma, como toda magia deve ser, é quando você consegue torcer as regras da “realidade” do jogo. Por corolário, um “jogador Desperto”, por assim dizer, seria um jogador (ou Narrador, pois eles também são capazes de fazer mesas de jogo verdadeiramente mágicas) que ganha consciência que as regras do jogo não são leis definitivas e podem ser torcidas/modificadas, ao invés de simplesmente aceitas. Como eu digo num outro post, essas modificações podem ser vulgares ou coincidentes, ou seja, podem ser coisas naturais ou grosseiras. Uma modificação de regras que todo mundo concorde que faça sentido seria uma modificação coincidente. A hora em que o Narrador torce as regras para “roubar” em favor do seu NPC e permiti-lo desviar de balas e agir quinze vezes num turno, sem direito a resistência, aí seria uma modificação vulgar/grosseira das regras, que geraria descontentamento dos jogadores.

E aí chegamos na quarta e última parte da metáfora, o Paradoxo. Este nada mais seria que as reações dos demais jogadores quando você torce demais as regras de uma forma que os outros não aprovem. Nem sempre é algo que gera uma conseqüência imediata; assim como os pontos de Paradoxo podem ir se acumulando, sem necessariamente gerar uma Choque de Retorno ou similar, os descontentamentos podem ir se acumulando antes que alguém proteste. De novo da mesma forma que o Paradoxo, se você ficar na sua e não fazer mais coisas para desagradar os outros, esses pontos vão embora com o tempo. E por fim, da mesma forma que o Paradoxo, quando as coisas dão errado, os resultados podem ser bem desastrosos: jogadores abandonando a mesa, rixas, narradores ficando de saco cheio e mandando raios em cima dos personagens, coisas assim.

E isso completa a bela metáfora que eu acho que Mago é de si mesmo, pois como eu disse logo no início desse texto, eu acho que esse é um jogo que empodera os jogadores como poucos, que os encoraja e capacita a agirem como Despertos e modificarem bastante o universo ficcional em que os personagens deles vivem, que os põe num papel mais ativo do que passivo, ao convencerem os outros jogadores e o Narrador dos Efeitos que eles estão criando com as Esferas e tudo o mais, testando o seu Arete, a sua capacidade de oratória contra eles.

E é por isso que eu acho esse jogo lindo.